sábado, 27 de abril de 2013

A realidade é relativa



“Uma jovem mulher estava a fazer tempo no aeroporto para apanhar o avião. No snack-bar, comprou biscoitos e foi buscar um café. Quando voltou à mesa onde tinha a sua bagagem encontrou um homem a comer descontraidamente os seus biscoitos. Ela, irritada pelo à vontade do homem, tirou um biscoito para demonstrar que os biscoitos lhe pertenciam. O homem tirou outro biscoito. Enquanto lia o jornal a sua irritação ia crescendo, pois o homem continuava a comer biscoitos. Quando já só sobrava um biscoito, o homem partiu-o ao meio, comeu metade e levantou-se sem dizer nada. Completamente furiosa, ela comeu a metade do biscoito e fechou o jornal. Quando abriu a mala para guardar o jornal, encontrou o seu pacote de biscoitos intacto dentro da mala. Tinha comido os bolos ao homem. A irritação deu lugar à vergonha. A sua opinião sobre o homem transformou-se num segundo (…)”

                                                               imagem tirada da net


O intelecto fecha-nos, muitas vezes, numa cela de imagens ilusórias. Cada um de nós constrói uma realidade em função de informações recebidas e compreendidas pela nossa mente, tomando a imagem da realidade pela realidade em si, esquecendo-nos que as crenças e as informações que formam o nosso conhecimento objetivo constituem uma realidade subjetiva, uma verdade que é só nossa, num instante dado. Há que estar aberto ao questionamento de cada informação, ampliando os horizontes da consciência a cada momento; estar consciente da parcialidade do nosso conhecimento. Lembrar-nos da jovem do aeroporto pode ser útil, sobretudo, nas nossas discussões do dia-a-dia: ter presente que podemos estar a ser injustos na nossa visão, ter a consciência que as nossas percepções são relativas e, na consciência desta relatividade, também podemos mostrar aos outros que, às vezes, são eles que não estão a ver a nossa realidade e que, generosamente, estamos a repartir o último biscoito.
Há que realçar também o quanto as diferentes interpretações da realidade explicam os acontecimentos da vida consoante somos mais optimistas ou pessimistas. Como nos diz Helena Marujo, os pessimistas explicam os sucessos como alguma coisa que não depende deles e os insucessos como confirmações de que não prestam. Já os optimistas reconhecem, perante um sucesso, que têm competências, que se esforçaram e dedicaram e que, da próxima vez, voltarão a ter sucesso, ou seja, generalizam positivamente. Perante um insucesso, reconhecem o seu carácter pontual, e consideram que da próxima vez será melhor. Estas diferentes abordagens da realidade têm, evidentemente, impactos muito diferenciados no nosso comportamento. Há que aprender a reconstruir as leituras interiores sobre a vida e sobre nós próprios.
“Penso, sinto e, em função desses aspectos, escolho agir. É necessário perceber que a realidade é alterável e depende muito da nossa acção. A avaliação científica demonstra que, se formos capazes de mudar o nosso discurso interior de forma positiva, é possível alterar a realidade. E mesmo que a realidade seja dramática e, em determinados momentos, nem sequer a possamos controlar, temos sempre um espaço de liberdade interior que corresponde à nossa linguagem íntima, à nossa narrativa na relação com os outros e com o mundo.”

sábado, 13 de abril de 2013

Pausa

“Chamamos cultura da pausa à tradição oriental de dar importância aos silêncios na comunicação, às margens na pintura, aos vãos livres na arquitectura, ao não dito na mensagem e à receptividade na contemplação (…)

            Não se vê melhor a Lua – diz-se na tradição zen – agitando a água no charco, mas deixando que fique quieto e sedimente. A verdade sobre nós mesmos é-nos dada como um presente quando a deixamos aparecer. E esta verdade sobre nós mesmos é, ao mesmo tempo, a verdade sobre tudo e sobre o todo. Mas é preciso deixar que a água embora turva, fique parada para reflectir como um espelho.”
   Juan Masiá, A Sabedoria do Oriente



“(…) A verdade é que privamo-nos a nós próprios do tempo necessário para colher o sabor, o silêncio ou as cintilações que temperam a vida. No atropelo ofegante a que nos entregamos há um crescente alheamento de nós próprios. Não lhe damos o estatuto de patologia, mas esta desertificação da vida interior disfarçada de eficácia o que é senão isso? As nossas sociedades medem, infelizmente, o seu progresso esquecendo, quando não obliterando, domínios da vida humana que não são mensuráveis e que têm a ver com a interioridade, a criação, o dom, a alegria, o sentido. Héritier escreve: “Há uma leveza, uma graça singular no puro e simples facto de existir, para lá de todos os compromissos profissionais, dos sentimentos intensos, das lutas políticas e humanas: é disto e de nada mais que vou agora procurar falar. Desse minúsculo não sei quê a que chamamos o sal da vida.” E elenca, então, por um processo de associação espontânea, aquilo que nós não vemos ou não chegamos a valorizar devidamente: percepções, pequenos prazeres, detalhes dolorosos ou alegres, momentos de humor, curiosidades, lugares, flagrantes quotidianos. Deixo-vos com alguns exemplos: assobiar com um fio de erva na boca; limpar o prato com um bocado de pão; assistir a uma cavalgada num western; saltar à corda que duas amigas fazem girar sempre mais rapidamente; sentar-se com as próprias forças na cama de um hospital; recordar-se já sem vergonha das imbecilidades que fizemos lá atrás; cair do pódio à frente de 100 pessoas; dançar maravilhosamente a valsa, mas também a rumba, o tango e o rock´n´roll; passar uma noite em branco para ler um romance; escrever à mão; perder tempo a formular melhor uma ideia; improvisar durante a semana um jantar de domingo; perder-se a contemplar um formigueiro que ferve de actividade; não fazer de conta que não se vê o sofrimento alheio; não conseguir recordar-se da sequência de uma anedota, apesar de todo o esforço, preparar uma mousse de chocolate seguindo a receita (cheia de manteiga) herdada da avó; respirar devagar e de olhos fechados num prado; amar as palavras degustando a sua sonoridade; reencontrar no armário o calçado de verão, quando ainda é inverno; pensar com prazer nos encontros que nos mudaram a vida; ser feliz quando os outros o são.” 
José Tolentino Mendonça (O sal da vida – Expresso)


                                                       imagem tirada daqui


Há que parar, fazer silêncio em nós… São as pequenas pausas de reflexão que nos retemperam e ajudam a tomar fôlego para o caminho que está por percorrer. É a consciência do instante que transforma os momentos de bem-estar numa reserva de felicidade a que podemos recorrer quando nos falta a fé ou a esperança. É a nossa dimensão silenciosa, submersa, que nos permite estar atentos aos pequenos nadas, saborear o “sal da vida”. Porque é no pequeno, no insignificante, no mais quotidiano, que a Vida habita.