“A cozinha representa a construção da autonomia do homem face
à natureza, a sua capacidade de se diferenciar e de ser. (…)
A cozinha é, por excelência, o lugar da transformação. É o
lugar da instabilidade, da procura, da incerteza, das misturas inesperadas, das
soluções imprevistas, das receitas adaptadas. A cozinha é o lugar da
criatividade e da recomposição. É a metáfora da própria existência humana, pois
distingue o homem, precisamente, esta capacidade de viver na transformação,
numa mobilidade que não é só geográfica.”
José Tolentino Mendonça, Nenhum Caminho será Longo
imagem tirada daqui
Podemos dizer que a história do homem se confunde com a
história da alimentação. O domínio do fogo permitiu a passagem do “cru ao
cozido” interpretada por Lévi-Strauss como o processo de passagem do homem da
condição biológica para a social. Ou seja, a cozinha vai diferenciar o
comportamento humano não só na sua vertente biológica, mas na sua vertente
social pelo facto de fomentar as interações sociais à roda de uma mesa: Comer e
beber em companhia reforçam relações de proximidade. À mesa temos um espaço/tempo em
que, como nos diz José Tolentino Mendonça, “o contar se realiza ao contar-se”.
Um espaço/tempo de convivialidade, de encontro, de reciprocidade. Ao partilhar
a comida compartilhamos uma experiência dos sentidos. E, sobretudo, alimentamo-nos mutuamente. Porque se a cozinha
é o lugar privilegiado da transformação é, também, o lugar privilegiado da
dádiva. Dádiva que partilhamos à mesa numa plena reciprocidade de corpo e alma (a observação científica mostra que as refeições em comum são, em geral, consumidas mais lentamente e a quantidade total de calorias ingeridas é inferior relativamente às ingeridas em refeições solitárias, como se a convivialidade tivesse já saciado o nosso apetite e alimentado as nossas células).
Nestes tempos que habitamos e, em particular, na época festiva
que se aproxima, permitamo-nos viver plenamente esta comunhão que só as
refeições em companhia nos proporcionam. Permitamo-nos, também, uma reflexão
sobre a capacidade do homem viver na transformação, sobre a capacidade da descoberta das soluções
imprevistas, da criatividade e da recomposição a que a cozinha nos remete.